12/12/08

O Maestro Sacode a Batuta


O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe ...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...

Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto, Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
-
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" (Sexta parte do Poema «Chuva Oblíqua» Publicada em Orpheu, 2, 1915).

8 comentários:

Anónimo disse...

É quase impossível não nos deixarmos tocar pela "Chuva Oblíqua".

Anónimo disse...

Gosto muito da Chuva oblíqua.
Ilustra bem o propósito para que serve e contém belas reflexões sobre a vida, como toda a poesia de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos, que eu tanto aprecio.
Confesso que tenho um fraquinho por Pessoa ortónimo e Álvaro de Campos!!!
Estou a ver que o pai do Menino Triste é mesmo grande!!! Hehe.
O Menino está muito bem acompanhado nesta foto.
Também gostava de conhecer o Maestro.
Quando era adolescente, não perdia uma sessão de um programa dele sobre música clássica... embora também goste de heavy metal!!!

Anónimo disse...

"A Essência" estava muito bem exposto na FNAC Colombo, a fazer figura. Numa área BD que já viu melhores dias.

Unknown disse...

É engraçado como às vezes as coisas acontecem: Estava eu a ler umas "coisas" de FP, quando dou com este texto! Imediatamente me veio à ideia a foto que tirámos os três no último FIBDA. Acto contínuo, aqui a coloquei. Acho que é a melhor "legenda" que podia ter. Tem tudo: a minha infância, o Maestro, a música, a beleza, a simplicidade, a beleza, a imaginação...

Anónimo disse...

Faltou a palestra do maestro durante o FIBDA. Foi daqueles momentos irrepetíveis...

Qual Albatroz disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Qual Albatroz disse...

O Maestro vai lançar agora uma história da Música com mil páginas - coisa grande. Agora adivinhem quem escreveu uma introdução para esse livro... José Luís Peixoto.
Ouvi isso ontem e não sei ao certo se é mesmo verdade, mas tinha muita pinta, não é? visto que o Peixoto também escreveu a introdução para "A Essência".

Nuno Amado disse...

Olá
não sei se já leste mas já fiz a respectiva critica ao MT. Quero mais!

Abraço e obrigado !