O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe ...
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...
Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto, Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
-
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" (Sexta parte do Poema «Chuva Oblíqua» Publicada em Orpheu, 2, 1915).
8 comentários:
É quase impossível não nos deixarmos tocar pela "Chuva Oblíqua".
Gosto muito da Chuva oblíqua.
Ilustra bem o propósito para que serve e contém belas reflexões sobre a vida, como toda a poesia de Fernando Pessoa e dos seus heterónimos, que eu tanto aprecio.
Confesso que tenho um fraquinho por Pessoa ortónimo e Álvaro de Campos!!!
Estou a ver que o pai do Menino Triste é mesmo grande!!! Hehe.
O Menino está muito bem acompanhado nesta foto.
Também gostava de conhecer o Maestro.
Quando era adolescente, não perdia uma sessão de um programa dele sobre música clássica... embora também goste de heavy metal!!!
"A Essência" estava muito bem exposto na FNAC Colombo, a fazer figura. Numa área BD que já viu melhores dias.
É engraçado como às vezes as coisas acontecem: Estava eu a ler umas "coisas" de FP, quando dou com este texto! Imediatamente me veio à ideia a foto que tirámos os três no último FIBDA. Acto contínuo, aqui a coloquei. Acho que é a melhor "legenda" que podia ter. Tem tudo: a minha infância, o Maestro, a música, a beleza, a simplicidade, a beleza, a imaginação...
Faltou a palestra do maestro durante o FIBDA. Foi daqueles momentos irrepetíveis...
O Maestro vai lançar agora uma história da Música com mil páginas - coisa grande. Agora adivinhem quem escreveu uma introdução para esse livro... José Luís Peixoto.
Ouvi isso ontem e não sei ao certo se é mesmo verdade, mas tinha muita pinta, não é? visto que o Peixoto também escreveu a introdução para "A Essência".
Olá
não sei se já leste mas já fiz a respectiva critica ao MT. Quero mais!
Abraço e obrigado !
Enviar um comentário